2 de ago. de 2013

Ric O'Barry, o ex-treinador do golfinho flipper, hoje arrisca a própria vida para proteger a mais carismática e inteligente espécie de mamíferos marinhos

MEADOS DE 2007. Seria preciso uma operação de guerra para provar ao mundo o que Richard O’Barry sabia há 20 anos: a baía de Taiji, no litoral do Japão, era palco de um dos mais cruéis espetáculos cometidos pelo homem contra a vida selvagem. O show de horrores consistia na captura de golfinhos filhotes vivos e na matança de dezenas desses mamíferos marinhos adultos. Os pescadores envolvidos no bilionário negócio de exportar os cetáceos para shows – um golfinho treinado chega a custar U$S 300 mil – guardavam o local com cercas elétricas vigiadas, homens armados e placas de “Mantenha Distância”. O último a tentar furar o circo havia sido o lendário ativista Paul Watson, da ONG Sea Shepard, em 2003. Sem sucesso, Watson terminou preso por um mês. Agora era hora de O’Barry tentar.

Acima, ativista pela libertação dos animais

Após três anos estudando o local, juntou forças com o documentarista Louie Psihoyos e traçou uma estratégia. Na calada da noite, um grupo de mergulhadores experientes, com roupa de borracha camuflada e óculos de visão noturna, espalharia pelas rochas da baía, e debaixo da água, câmeras que imitavam pedras equipadas com sensor infravermelho e microfones. Quando chegasse a hora da ação e os pescadores fechassem o cerco sobre os golfinhos, tudo seria registrado. A operação deu certo e dela surgiram imagens cruéis. Os sonidos pareciam gritos de desespero a clamar por socorro. Socorro que não chegou nem aos filhotes capturados nem aos adultos mortos a pauladas e arpoadas. O mar foi tingido de vermelho pelo sangue derramado e a carne dos golfinhos, vendida nos mercados japoneses ou servida às crianças na merenda escolar.

O mundo ficou boquiaberto com as cenas quando The cove, a baía da vergonha, foi lançado em 2009. Um ano depois, a Academia em Hollywood o premiava com o Oscar de melhor documentário. O filme atiçou a opinião pública mundial contra o governo do Japão, um dos únicos países do mundo a permitir a caça e o abate de cetáceos. Deu resultados imediatos: um mês depois de o filme entrar em cartaz, as autoridades japonesas proibiram a comercialização da carne de golfinhos. Ainda que as capturas na baía de Taiji continuem até hoje, as matanças cessaram.

Treinador do aquário de Miami

A conquista no Japão com o premiado The Cove é o mais famoso capítulo da vida de Ric O’Barry dedicada à libertação de golfinhos. Em mais de 40 anos de carreira viajando pelo planeta, o ativista já devolveu ao mar indivíduos da espécie no Haiti, nas Bahamas, em Cuba, nos Estados Unidos, na Guatemala e no Brasil. O’Barry, que antes de converter-se à causa trabalhava justamente como treinador dos animais que encarnaram o famoso Flipper do seriado americano da tevê, coleciona glórias e inimigos ferrenhos, como o governo japonês, os pescadores da Indonésia, a Associação Mundial de Zoos e Aquários e o gigantesco parque aquático Sea World, com sede em Orlando, na Flórida.

Golfinhos confinados pelo circo indonésio ficam doentes e frequentemente tentam se suicidar

Sua luta atual, porém, talvez seja uma das mais arriscadas que tenha encarado: fechar as portas do único circo de golfinhos em atividade no mundo, na Indonésia. Ao mesmo tempo, busca frear com ONGs parceiras o sacrifício de centenas desses animais por pescadores da ilha de Lombok, vizinha a Bali. Ali, a carne dos golfinhos vem sendo usada como isca para a pesca de tubarão com o objetivo final de vender a barbatana do peixe para o mercado chinês.

Encontro O’Barry num hotel em Bali, uma das mais de 13 mil ilhas que formam o país, proferindo uma palestra na qual tenta conseguir assinaturas para convencer o governo nacional a proibir o tal circo. Aos 70 anos, ele exibe um físico ereto, cabelos brancos e fala com energia mexendo as mãos. Na esquerda possui a tatuagem de um golfinho. Na outra, falta-lhe a tampa do dedão, amputado no tempo em que trabalhou de dublê para James Bond no filme Nunca mais outra vez, quando andava lado a lado com as estrelas de Hollywood. O’Barry veste uma camisa preta com o nome de sua ONG, Dolphin Rescue Team, e, por cima dela, ostenta um colete à prova de balas.

“Há três formas de matar os golfinhos: poluição, redes de pesca e cativeiro,” explica Ric à plateia, mostrando fotos do circo. Um golfinho está com o nariz todo esfolado. Outro, com manchas de queimadura na pele por conta do número, que consiste em pular através de uma argola de fogo. Seus olhos estão vermelhos do cloro do pequeno tanque. “Outro dia, um dos golfinhos tentou se suicidar batendo a cabeça contra o vidro”, conta O’Barry.

Mas o show não pode parar. Cidade após cidade, os golfinhos arrancam aplausos da criançada e depois embarcam em macas nos caminhões, atravessando longas distâncias por estradas esburacadas. No caminho, a sede dos mamíferos é aplacada por baldes de água. Quando um morre, é reposto por outro. Ao todo, o circo conta com mais de 70 animais, mantidos em uma piscina em Welein, pequeno vilarejo na costa central de Java, próximo ao Parque Nacional de Karimun, local de captura. “Isso não é viver. É sobreviver. Viver para eles é nadar 64 quilômetros todos os dias no oceano”, relata O’Barry.

A luta do ativista quase custou sua vida na noite anterior ao nosso encontro. “Cinco homens tentaram arrombar a porta do meu quarto no hotel. Fui salvo pelos seguranças. Minha amiga Kate Tomilnson foi ameaçada de morte e lhe roubaram a câmera na última vez que tentou fotografar o circo. Agora, eles só aceitam indonésios nos espetáculos”, conta. “Estamos num momento delicado. Acabo de conseguir a assinatura do ministro do Meio Ambiente da Indonésia proibindo o circo de circular no país. A máfia dos golfinhos está furiosa comigo.”

Mas você está feliz?, lhe pergunto. “Claro que não”, responde. “Construímos um enorme centro de reabilitação marinho na praia para receber os golfinhos do circo. O ministro havia prometido que iria nos entregar os bichos. Gastamos US$ 50 mil no projeto. Mas, agora, para fazer um meio-termo com a máfia da Wersut Seguni Indonesia (o nome da companhia circense), está voltando atrás e negando essa possibilidade”, reclama O’Barry. “Não podemos simplesmente soltar os golfinhos no mar. Eles desaprenderam a caçar peixes. Não sabem mais usar o sonar para navegar.”

Flipper brasileiro
Ele sabe do que está falando. Anos atrás, viveu experiência parecida no Brasil com o golfinho ironicamente apelidado de Flipper (um macho da espécie golfinhonariz-de-garrafa). Capturado em Laguna, Santa Catarina, em 1984, Flipper, com menos de 1 ano de idade, foi levado para o Oceanorium, parque localizado em São Vicente, litoral de São Paulo. Ali ficou por nove anos, cinco dos quais fazendo shows.
Em 1992 a ONG WSPA (World Society for the Protection of Animals) entrou na Justiça pedindo a libertação do animal. O Supremo Tribunal Federal acatou o pedido.

Cena do documentário The Cove revelou a matança de golfinhos na Baía de Taiji, no Japão

O’Barry foi encarregado de reabilitar o golfinho para sua nova vida. Passou um mês com ele no tanque de São Vicente e depois levou o animal de helicóptero de volta a Laguna. “Ali o treinei por três meses, ensinando-o a entender as correntes, as marés, o ritmo do oceano. Ele aprendeu a pescar e recuperou o seu sonar”, lembra o especialista. Em março de 1993, em espetáculo televisionado, O’Barry cortou as grades e o golfinho nadou vagarosamente para a liberdade. Nadou ao lado de seu treinador por meia hora e ganhou o mar. A última vez que foi avistado foi em 1995. “Foi assim que conseguimos que o Brasil proibisse a realização de shows com golfinhos. O Brasil, aliás, é um exemplo e não permite nem que se nade ao lado dos golfinhos em Fernando de Noronha.”

Richard Barry O’Feldman mudou seu nome para alavancar a carreira. Nasceu e cresceu em Miami Beach, na Flórida. Aos 16 anos aprendeu a mergulhar durante uma viagem pelo Mediterrâneo. De volta à Flórida, conseguiu trabalho com Art McKee, um caçador de tesouros submarinos. Um dia, nas Bahamas, o barco foi cercado por golfinhos.

O’Barry pulou na água e começou a brincar com eles. “No mar são os golfinhos que começam o contato. É uma interação diferente da que ocorre nos tanques. Eles costumam brincar uma meia hora, depois cansam e vão embora.”

O trabalho com McKee era excitante, mas pouco lucrativo. O’Barry descolou então uma vaga no Aquário de Miami, mais precisamente na equipe que coletava espécies marinhas para vender a outros aquários do mundo, incluindo golfinhos. O’Barry gostava tanto deles que sempre se oferecia para ir ao tanque alimentar os bichos, até que um dia foi promovido a treinador. Pouco tempo depois, foi procurado pelo diretor de cinema Ivan Tors, da série de tevê Sea hunt, que já havia lançado dois longas-metragens: Flipper e As novas aventuras de Flipper, o golfinho inteligente e prestativo. Ele queria produzir um seriado com histórias do golfinho e chamou O’Barry para ajudá-lo.

Consciência pesada
Flipper virou um sucesso e O’Barry, uma celebridade. “Andava com os artistas e músicos da moda. O The Mamas and the Papas tinha casa na minha rua. David Crosby (da banda Crosby, Stills, Nash & Young) era meu parceiro das velejadas. Levava vida de barão. Tinha três Porsches, um Jaguar, um Ford Thunderbird vermelho e várias garotas.” Mas nem tudo eram flores. Um peso na consciência o atormentava e, aos amigos mais próximos, O’Barry confessava quanto admirava os golfinhos que se recusavam a fazer os truques. “Eu sabia que o que fazia era errado, mas a festa estava tão boa que não conseguia parar.”

Com o fim do seriado, em 1969, O’Barry se mandou para a Índia, para meditar. Um ano depois, foi chamado a Miami para ver Kathy, sua golfinha preferida (entre os cinco animais diferentes treinados para o papel de Flipper). Ela estava muito doente. O’Barry entrou no tanque e ela morreu em seus braços. “Eu era apaixonado por ela”, afirma ele.

A morte de Kathy foi a gota d’água para uma virada radical na carreira e na própria vida de Ric O’Barry: em 22 de abril de 1970, o ex-treinador de golfinhos confinados fundava o Dolphins Project com a missão de lutar contra qualquer forma de cativeiro desses mamíferos marinhos e buscar alternativas para libertá-los. Ao longo de todos esses anos sua luta lhe cobrou um alto preço pessoal. “Perdi a festa de formatura de meu filho Lincoln e a minha primeira mulher cansou do triângulo amoroso entre nós e os golfinhos”, diz. “O’Barry é um dos mais focados no movimento de luta pelos seus objetivos. Ele faz isso com a mais pura paixão”, diz Paul Watson, da Sea Shepard, referência mundial na defesa da vida marinha. “Isso é tão forte que ele tem de conviver com o que mais odeia: conflitos. E a sua vida é feita de conflitos. Todos os dias”, diz Helen, sua esposa atual, com quem se casou em 1999. “Ele vê as coisas da perspectiva dos golfinhos”, conta Helen. “Ele sente o que eles sentem: angústia, insônia. Costuma acordar gritando com pesadelos no meio da noite.”

Pergunto a O’Barry se ele não está cansado de tanta luta. “Sim, preferia estar em casa com minha filha, regando meus bambus.” Um segundo depois, porém, o homem muda de ideia. “Eu acho que vou lutar até o fim, mas não sei se vou ter tempo para ver a vitória. Tudo bem. Tenho paciência e combato sem raiva. Você acha que gosto de usar um colete à prova de balas e andar com seguranças? O que eu queria mesmo era ficar com os golfinhos.”

Fonte: Revista Status

2 de ago. de 2013
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