17 de jun. de 2014
Na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), uma pesquisa envolvendo animais revoltou alunos, funcionários e professores do curso, além de pessoas ligadas ao bem-estar animal na cidade, e somente após 2 anos o veterinário é processado por maus-tratos aos animais.
– Vi um animal com uma prótese, com mandíbula infeccionada, com mau cheiro, que foi eutanasiado durante uma aula no final de abril. O Hospital Veterinário recolheu uma fêmea que havia dado cria no canil da pós e que estava em condições de sujeira, com dermatite, mas o estado nutricional era bom. Ela e outros cães estavam com essas próteses e com mandíbula contaminada, com infecção, secreção e forte odor. Soube que dois bolsistas cuidam dos bichos, mas que estariam apavorados, sozinhos, sem saber o que fazer com os animais. Não condeno o experimento, que é necessário, mas acho que foi malconduzido – comentou um funcionário do hospital, que não quis se identificar.
– Os animais ficaram abandonados depois dos procedimentos, aos cuidados de estagiários que não sabiam o que fazer diante de tanto sofrimento – disse outro funcionário, que também pediu para não ser identificado.
Imagens enviadas ao jornal Diário de Santa Maria – as pessoas que mandaram pediram suas identidades preservadas – mostraram os animais magros, trancados em gaiolas, deitados em meio à própria urina, com pratos de ração virados e vazios, em um ambiente sem condições de higiene.
Outros pontos questionados são a quantidade e o uso de animais saudáveis. As pessoas acham que deveriam ter sido utilizados cães com câncer – objetos iniciais da pesquisa. Gomes alega que não houve tempo hábil e nem logística para reunir animais doentes e que o número foi o mínimo necessário para compor a mostra da pesquisa.
Os passos do projeto
- O projeto do doutorando Cristiano Gomes foi registrado no gabinete de projetos da UFSM e aprovado pelo Comitê de Ética em Experimentação Animal da UFSM e em um exame de qualificação, onde é apresentado a uma banca, composta por cinco professores doutores na área – três da UFSM e dois de instituições de fora. A qualificação ocorreu em 30 de novembro de 2010.
- Segundo o doutorando, no início de sua pesquisa, em 2006, durante seu mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foram feitos testes em coelhos. A partir de 2009, a experiência passou por uma etapa em que as novas placas foram implantadas em cadáveres de cães. O experimento em cães vivos e saudáveis teria ocorrido entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012, período em que foram feitas as cirurgias de remoção das mandíbulas e recomposição com as placas de titânio.
- Sobre os casos de cães que tiveram de ser mortos em função do insucesso do experimento, Gomes argumenta que, como a pesquisa é inédita, ele não tinha como prever com exatidão os resultados, e, portanto, não tinha como antecipar que a eutanásia seria inevitável para alguns bichos. O orientador, Ney Luis Pippi, mencionou que a medida teria que ter sido comunicada ao comitê de ética, o que não ocorreu.
Tanto a coordenação da pós-graduação em Medicina Veterinária quanto a direção do Hospital Veterinário e a reitoria da UFSM não tinham conhecimento dos desdobramentos da pesquisa sobre câncer de boca em cães.
– Fiquei sabendo da história na última sexta-feira. A coordenação (da pós) não tem ingerência sobre os experimentos dos pós-graduandos. A coordenação não tem como sair e inspecionar os cento e poucos alunos que temos – disse a coordenadora da pós-graduação em Medicina Veterinária, professora Sonia Terezinha dos Anjos Lopes.
A coordenadora comentou que iria se informar com o doutorando Cristiano Gomes e com seu orientador, Ney Luis Pippi, sobre o ocorrido no projeto.
– A área física é a do hospital, mas o hospital não interfere nem nas aulas nem nas pesquisas da pós – disse Luiz Sérgio Segala de Oliveira, diretor do Hospital Veterinário da UFSM.
A reitoria disse que só se manifestará sobre o assunto depois do pronunciamento do Comitê de Ética.
Em 02/08/2013, a juíza Gianni Cassol Konzen, da 1ª Vara Federal de Santa Maria, deferiu parcialmente uma ação civil pública movida pelo Movimento Gaúcho de Defesa Animal (MGDA) em caráter de urgência.
A entidade protetora pediu, em 1º de julho, a proibição do uso de qualquer tipo de animal em sala de aula na UFSM. A juíza aceitou o pedido de suspensão, mas apenas em casos que envolvam animais saudáveis, ficando liberado o uso de animais doentes. A partir da decisão, todas as atividades envolvendo cobaias sadias, inclusive, exames e diagnósticos, foram suspensas até julgamento final sobre a questão.
Somente após 2 anos dos crúeis experimentos, ele é processado
O que disseram
Cristiano Gomes, médico veterinário e réu do processo
Contatado pelo Diário na sexta, Gomes atendeu uma das quatro chamadas, mas quando informado sobre o teor da reportagem, a ligação caiu. Até ontem, não havia respondido ao e-mail que foi enviado nem dado retorno ao recado deixado com sua mulher
Ney Luis Pippi, orientador de Gomes
Procurado pelo Diário na sexta-feira, o professor disse que desconhecia a denúncia e que não iria se manifestar sobre o caso
A investigação
Trechos de depoimentos de testemunhas à Polícia Federal durante a investigação
Ney Luis Pippi, orientador de Gomes no experimento
Contou que acompanhou o experimento e que foram seguidos os procedimentos legais. Disse ainda que os animais foram medicados e alimentados adequadamente. Que a limpeza no canil era feita diariamente pela Sulclean. Pippi apresentou documento comprovando a aprovação do projeto
Marta Lisandra do Rego Real, integrante da Comissão de Ética em Experimentação Animal da UFSM
Afirmou que não esteve no canil, mas sabe que limpeza era diária. Que não considerava maus-tratos os procedimentos. Sobre as eutanásias, acredita que tenham sido comunicadas
Eliane Maria Zanchet, coordenadora da Comissão de Ética
Informou que recebeu denúncia de três veterinárias sobre a situação irregular no cuidado pós-operatório dos animais
Liandra Cristina Portella, funcionária da UFSM
Disse que, ao avaliar um cão em aula, verificou que estava com prótese na mandíbula, que era destinado à eutanásia e era parte do experimento. Tomou conhecimento que outro animal, uma cadela, tinha dado cria durante a pesquisa
Camila Feltrin Giglio, médica veterinária
Informou que, em 1º de maio de 2012, um estagiário da pesquisa de Gomes pediu sua ajuda para tratar uma cadela com filhotes. Ela estava em situação precária, com fome e com a boca totalmente contaminada, com mau cheiro intenso. Ela os medicou e os internou no Hospital Universitário. Os estagiários disseram que Gomes havia mudado para Santa Catarina e abandonado o projeto, deixando seis cães aos cuidados dos estagiários. Havia apenas um pote, tanto para água quanto para comida
Rogério Maria, funcionário da Sulclean
Disse que sua função era limpar o local (sala) do canil, e não as gaiolas onde os cães estavam
Sérgio Luiz da Silva Rodrigues, ex-funcionário da Sulclean
Contou que trabalhou no Hospital Veterinário e lembra do experimento. Disse que depois das cirurgias (colocação das próteses), os animais iam para o canil. Que era ofertada ração endurecida, mas que eles não conseguiam movimentar as mandíbulas para comer. Os cães também não conseguiam tomar água e não havia material para a higienização. Disse que Gomes eventualmente aparecia. Que durante a noite não havia ninguém no local. Por quatro meses, nunca viu alguém aplicar medicação nos cães
A denúncia do Ministério público
Trechos do relatório da denúncia do Ministério Público à Justiça
"...não apresentou (Gomes) justificativa para que as instalações experimentais ocorressem em animais saudáveis." Além disso, "seria viável que o projeto se iniciasse apenas com um indivíduo e, acaso, bem sucedido, poderia ensejar amostras maiores."
"...o experimento resultou em ferimentos e lesões irreversíveis, o que configurou o delito de maus-tratos... as lesões acarretaram a morte por eutanásia de cinco dos animais."
"...após a instalação das referidas placas, os animais permaneceram trancafiados em gaiolas sem cuidado de higienização, expostos às próprias urina e fezes e sem acompanhamento clínico... sendo-lhes fornecida alimentação inadequada (ração seca), o que ensejou o surgimento de estado infeccioso na boca..."
O veterinário Cristiano Gomes, que utilizou 12 cães como cobaias em um experimento de doutorando na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), está sendo processo criminalmente por maus-tratos contra os animais.
Em maio, a Justiça Federal aceitou a denúncia do Ministério Público Federal, que abriu inquérito após a publicação do caso pelo Diário, em maio de 2012, com exclusividade.
O experimento resultou na mutilação de 12 cães e na morte de cinco deles. Gomes é acusado de ferir e mutilar os cães 12 vezes (número de animais), com a majorante (agravante) da morte de cinco deles, e por conduta omissiva de abuso e maus-tratos 12 vezes (sete pelos sobreviventes e cinco pelos filhotes nascidos durante a pesquisa).
O projeto de Gomes, à época doutorando da Pós-Graduação de Medicina Veterinária da UFSM, era criar e testar uma placa de titânio para recomposição de mandíbulas de cães que, devido a câncer, retirado parte ou toda a mandíbula. Doze cães cobaias saudáveis tiveram parte ou toda a mandíbula retirada para o teste das placas. Sete tiveram sequelas e cinco foram mortos por eutanásia.
À época, a maioria das pessoas ouvidas pelo Diário na época não questionava a importância da pesquisa, mas o uso de animais saudáveis, o abandono deles em condições precárias após o experimento e a eutanásia dos que ficaram com sequelas.
Com base na reportagem, o MPF instaurou inquérito e solicitou investigação à Polícia Federal, que ouviu depoimentos 12 testemunhas, o suspeito e o orientador dele, professor Ney Luis Pippi (leia abaixo). Professor e aluno negaram os maus-tratos e disseram que o experimento seguiu os procedimentos legais.
Após dois anos de investigações, o delegado da PF, Valmir Soldati, indiciou Gomes pelo crime previsto no artigo 32 da lei 9.605 de 1998.
Réu terá de entregar defesa escrita à Justiça
O processo tramita na 3ª Vara Federal de Santa Maria. A Justiça tentou citar o veterinário, mas ele não foi localizado. Nova tentativa será feita em Curitibanos, cidade onde ele atuaria como professor.
Na defesa escrita, que o réu deverá apresentar à Justiça, ele pode fazer alegações, oferecer documentos, justificativas, especificar provas e arrolar testemunhas. Só depois, o juiz pode absolvê-lo sumariamente ou dar andamento ao processo.
O orientador de Gomes, professor Ney Pippi, não foi investigado. Segundo o delegado Valmir Soldati, ele não tinha responsabilidade sobre o cuidado com os animais, somente sobre o trabalho científico do orientando.
Na sexta-feira passada, o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária, Rodrigo Lorenzoni, disse que o órgão aguardará o MPF enviar a denúncia para instaurar processo ético que apura se o veterinário agiu com imprudência, negligência ou imperícia